A teoria da cegueira deliberada também denominada de “evitação da consciência/ignorância consciente” ou “instruções do avestruz” é uma construção da ‘commow law’ mas também foi assimilada pela tradição ‘civil law’.
Tal teoria diz que se a ‘pessoa que se mantém propositadamente alheia a um fato de cuja consciência dependeria a incriminação de sua conduta responde pela respectiva prática como se possuísse o conhecimento elidido’.
O direito nacional já convive com a teoria da evitação da consciência, seja a título de ‘soft law’ ou de ‘hard law’. No primeiro caso temos o Regulamento Modelo da OEA, que foi aprovado com o voto do Brasil na XXII Assembleia-Geral da OEA que diz:
“Artigo 2 DELITOS DE LAVAGEM DE ATIVOS
1. Comete delito penal a pessoa que converter, transferir ou transportar bens conscientemente, devendo saber ou ignorando intencionalmente que tais bens sejam produto ou instrumentos de atividades delituosas graves.
2. Comete delito penal a pessoa que adquirir, possuir, utilizar ou administrar bens conscientemente, devendo saber ou ignorando intencionalmente que tais bens sejam produto ou instrumentos de atividades delituosas graves.
3. Comete delito penal a pessoa que ocultar, encobrir ou impedir a determinação da real natureza, origem, localização, destino, movimentação, direitos relativos ou propriedade de tais bens, conscientemente, devendo saber ou ignorando intencionalmente que tais bens sejam produto ou instrumentos de atividades delituosas graves.”
No que diz respeito à ‘hard law’ temos o art. 28, ii, ‘b’ do Estatuto de Roma, que foi incorporado em nosso ordenamento em 2002 com status de lei ordinária. Veja-se:
“Artigo 28 – Responsabilidade dos Chefes Militares e Outros Superiores Hierárquicos
Além de outras fontes de responsabilidade criminal previstas no presente Estatuto, por crimes da competência do Tribunal:
a) O chefe militar, ou a pessoa que atue efetivamente como chefe militar, será criminalmente responsável por crimes da competência do Tribunal que tenham sido cometidos por forças sob o seu comando e controle efetivos ou sob a sua autoridade e controle efetivos, conforme o caso, pelo fato de não exercer um controle apropriado sobre essas forças quando:
ii) Esse chefe militar ou essa pessoa não tenha adotado todas as medidas necessárias e adequadas ao seu alcance para prevenir ou reprimir a sua prática, ou para levar o assunto ao conhecimento das autoridades competentes, para efeitos de inquérito e procedimento criminal.
b) Nas relações entre superiores hierárquicos e subordinados, não referidos na alínea a), o superior hierárquico será criminalmente responsável pelos crimes da competência do Tribunal que tiverem sido cometidos por subordinados sob a sua autoridade e controle efetivos, pelo fato de não ter exercido um controle apropriado sobre esses subordinados, quando:”
Sob o ponto de vista de um ‘garantismo penal integral’, que não flerta com o excesso contra o indivíduo nem com a tutela deficiente da coletividade, haverá uma ofensa a equidade se não houver a aplicação da teoria da evitação da consciência. Conforme ensina Jakobs, ‘seria um contrassenso admitir que uma ação desafie a imposição de pena, se for protagonizada por pessoa que só representou o resultado típico em virtude de excesso de cuidado, e que idêntico proceder mereça a tolerância do Estado, caso o sujeito ativo ignore a incidência penal por frívola indiferença ao Direito.’
A aplicação da teoria da cegueira deliberada pode seguir duas linhas, a primeira é aquela que o agente finge que não vê a situação ilícita que lhe salta os olhos, já a segunda ocorre quando o agente cria propositalmente um obstáculo fantasioso, com a intenção de esconder sua vontade ilícita.
Em regra a teoria da cegueira intencional exige:
a) que o agente tenha conhecimento da elevada probabilidade de que pratica ou participa de atividade criminal;
b) que o agente agiu de modo indiferente a esse conhecimento; e
c) que o agente tenha condições de aprofundar seu conhecimento acerca da natureza de sua atividade, mas deliberadamente escolha permanecer ignorante a respeito de todos os fatos envolvidos.
Na jurisprudência há uma ampla aceitação da teoria, inclusive no STF (caso mensalão – AP 470), nos tribunais federais de igual forma, conforme segue:
Min. Celso de Mello admitiu a possibilidade de configuração do crime de lavagem de valores mediante dolo eventual, com apoio na teoria da cegueira deliberada, em que o agente fingiria não perceber determinada situação de ilicitude para, a partir daí, alcançar a vantagem pretendida. (…) (STF, inf 684)
‘Tais construções em torno da cegueira deliberada assemelham-se ao dolo eventual da legislação e doutrina brasileira. Embora utilizados mais amplamente no Direito Comparado para lavagem de dinheiro e tráfico de drogas, plenamente pertinentes para delitos de contrabando e descaminho, quando o responsável pelo transporte dos produtos ilícitos afirma ignorância e indiferença em relação ao objeto transportado.’ TRF4 APELAÇÃO CRIMINAL Nº 5004059-30.2011.4.04.7010/PR , j. 11.5.16
(…) quem, podendo e devendo conhecer, a natureza do ato ou da colaboração que lhe é solicitada, se mantém em situação de não querer saber, mas, não obstante, presta a sua colaboração, se faz devedor das consequências penais que derivam de sua atuação antijurídica”. Doutrina da cegueira deliberada equiparável ao dolo eventual e aplicável a crimes de transporte de substâncias ou de produtos ilícitos e de lavagem de dinheiro. 3. Apelação criminal improvida. (TRF4, APELAÇÃO CRIMINAL Nº 5009722-81.2011.404.7002, 8ª Turma, Juiz Federal Sergio Fernando Moro, por unanimidade, juntado aos autos em 23/09/2013)
Fontes:
José Paulo Baltazar Junior. Crimes Federais. 10 ed. Saraiva.
Rodrigo Leite Prado. Considerações sobre o crime de lavagem de ativos… in Temas atuais do Ministério Público Federal. 3 ed. Juspodivm;
TRF4 APELAÇÃO CRIMINAL Nº 5009722-81.2011.404.7002; APELAÇÃO CRIMINAL Nº 5004059-30.2011.4.04.7010/PR , j. 11.5.16; APELAÇÃO CRIMINAL Nº 2007.71.00.001795-3/RS; AC 200271000367711, Paulo Afonso, 8ª T., u., 8.10.08; Pitombo: 126.
STF, AP 470